MajorTom to Ground control

domingo, 28 de fevereiro de 2010

O nosso tempo

Bateste á minha porta, triste, faminto e cheio de dores,
Trouxe-te comigo para dentro. Adeus, oh meus amores!
Sussurrei-te ao ouvido: que já não te encontravas sozinho
Tapei-te com uma quente manta só de amor e de carinho,
E abracei-te com cuidado para não espantar o bichinho.

Nossas mãos se entrelaçaram, nossos fogos se cruzaram
Tremeram, já sem frio, nossos corpos, num abraço descansaram.
Disse adeus á solidão de um corpo vazio, cheio apenas de paixão
A fogueira tudo fundiu e juntou, naquele turbilhão que se fez
E mesmo passado o desvario, meu coração renasceu, outra vez.

Ficou quente. Repleto de luz, brilhando, agora forte, depois fraquinho
Porque no tempo que mata e que mói, em tudo aquilo que dói e destrói
No que se perde e constrói, desaparecem detalhes, na dureza do caminho.
Nas mágoas com que ficamos, na distância, nas barreiras e na escuridão deste mundo,
A luz perde a sua força, nos gritos, desculpas, falsas esperanças e juras de amor profundo.

A luz vai-se apagando e o coração soluça baixinho
Fechámos os dois os olhos e chorámos de mansinho
Enquanto te tive a meu lado, algumas coisas pedi
Uma delas foi que o tempo parasse e o mundo lá fora ficasse
Nesses momentos só nossos. E bem sei que a teu lado, cresci.

Mas o mundo quis entrar e tu, nessa ânsia de te dares, em vez de te aproximares
Tiveste que o deixar passar, de mim te afastar, para aos outros te entregares
Há quem diga que a vida é mesmo assim, ora dá, ora tira.
O mundo é cruel e não pára para connosco chorar
Nos dar a mão e levantar, a bola só gira e revira!

Sempre intrometido no nosso papel, sempre, sempre a girar
Resta-nos procurar o nosso lugar e na vida sempre amar
Procurar as deixas e dicas para o nosso papel encaixar
E na sua perfeição, na cabeça e no coração, para sempre ele ficar
Ou ainda talvez não, mas sem nunca desistir, até encontrar o nosso lar.

O teu e o meu calor, juntos, criaram uma nova entidade
Agora esse espírito morreu e toda a sua majestade.
Sei que os nossos detalhes irão perder-se, na longa estrada
Do tempo que transforma todo o amor, em quase nada
Como diz a canção, os risos e as lágrimas, a pintura riscada.

Com o meu coração em cinzas, ainda se avistam brasas no fundo,
Nelas vou misturar terra, deixar repousar, docemente o meu mundo
Esperando um destes dias deitar, uma semente pequenina
Para que com o calor do sol e a minha luz para a regar
Tirando-lhe a sede, espero eu bem, nasça uma plantinha!

Como o importante é o amor e quase só dele precisamos
Resta-me apenas desejar, que vivas muitos e bons anos
O tempo tudo cura e à distância, tudo se pode perdoar
Que a luz seja forte e traga a esperança de tudo bem acabar
Que alegre ela brilhe eterna, podendo a todos nós abraçar.
Carla Matos
13/10/2009

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Os Verdadeiros Males

"Vejo uma objecção a qualquer esforço para melhorar a condição humana: é que os homens são talvez indignos dele. Mas repilo-a sem dificuldade: enquanto o sonho de Calígula se mantiver irrealizável e todo o género humano se não reduzir a uma única cabeça oferecida ao cutelo, teremos que o tolerar, conter e utilizar para os nossos fins; sem dúvida que o nosso interesse será servi-lo. O meu processo baseava-se numa série de observações feitas desde há muito tempo em mim próprio: toda a explicação lúcida me convenceu sempre, toda a delicadeza me conquistou, toda a felicidade me tornou moderado. E nunca prestei grande atenção às pessoas bem intencionadas que dizem que a felicidade excita, que a liberdade enfraquece e que a humanidade corrompe aqueles sobre quem é exercida. Pode ser: mas, no estado habitual do mundo, é como recusar a alimentação necessária a um homem emagrecido com receio de que alguns anos depois ele possa sofrer de superabundância. Quando se tiver diminuído o mais possível as servidões inúteis, evitado as desgraças desnecessárias, continuará a haver sempre, para manter vivas as virtudes heróicas do homem, a longa série de verdadeiros males, a morte, a velhice, as doenças incuráveis, o amor não correspondido, a amizade recusada ou traída, a mediocridade de uma vida menos vasta que os nossos projectos e mais enevoada que os nossos sonhos: todas as infelicidades causadas pela divina natureza das coisas".

Marguerite Yourcenar, in 'Memórias de Adriano'